sexta-feira, outubro 28

DOAÇÃO

Sua visão estava embaçada. Sabia que não era o para-brisas do carro, eram seus olhos mesmos. Havia chorado um pouco – agora não mais – e isso dificultava a visão. Olhou para o acento ao lado. Lá estava o envelope vermelho berrante com letras garrafais. Mudou a marcha e continuou resoluto. Aquele horário não havia muitos carros na estrada, poderia abusar da velocidade até chegar ao local desejado.
Baixou a mão do volante e passou para a terceira marcha. A mesma mão pegou uma fotografia que estava no banco do carona. Pisou mais fundo e ergueu-a até a altura dos olhos. Viu sua filha, Silvia com um largo sorriso tendo ao colo o gatinho branco que ela tanto estimava. A fotografia foi levada até seus lábios e ele a beijou. A visão ficou mais embaçada pelas novas lágrimas.
A mão que segurava a fotografia jogou a mesma sobre o painel. A fotografia não ficou ali. O vento que entrava violentamente pelas janelas abertas a fez voar e parar no banco de trás do carro.
Estava a poucos minutos do local escolhido. Com a outra mão que antes segurava o volante buscou a carteira de cigarros no bolso da frente da camisa. A mão levou a carteira até os lábios. Com os dentes violou o plástico e com a habilidade de um ex-fumante abriu a carteira. Com a ajuda dos lábios pegou um cigarro.
A mesma mão que pegou a carteira, pegou o isqueiro recém comprado no mesmo posto em que comprara o cigarro. Acendeu o isqueiro e levou de encontro ao cigarro.
Uma luz cegou-lhe. Puxou o volante para a direita a poucos segundos de colidir-se com um carro que vinha em sentido contrário. Escapou ileso por pouco. Com mais cuidado acendeu o cigarro e jogou a carteira e o isqueiro fora.
_ Não iria fumar mais mesmo – pensou -! Soltou uma baforada que encheu o carro com o cheiro de tabaco. Havia parado de fumar a pedido de sua filha, mas hoje era um dia atípico. Sorveu cada tragada com um prazer que ele nunca havia sentido antes. Eram de prazer e de dor!
Baixou a mão do volante e passou para a quarta marcha. A mesma mão pegou o celular que estava no banco do carona.
Antes de ligar, viu pelo retrovisor, caído no banco de trás a fotografia de Silvia com um largo sorriso tendo ao colo o gatinho branco que ela tanto estimava.
Silvia estava agora no hospital esperando por um transplante! Ele discou.
Assim que alguém da policia rodoviária atendeu ele falou:
_ Socorro! Venham urgente ao quilometro treze da Rodovia 20! Um acidente com um Vectra azul contra um poste! Acho que o motorista está à beira da morte... – e desligou.
A mão que segurava o celular, o jogou para fora do carro. Ele viu a placa que marcava o quilometro treze e viu logo à frente o tal poste. O poste ficava bem na curva e servia para fazer uma derivação de linha do fornecimento de energia elétrica, agora serviria para outra coisa.
Pisou fundo! Ao contrário de todos os motoristas ele segurou firme e não movimentou o volante. O poste ficou grande aos seus embaçados olhos e aquilo foi à última coisa que ele viu!
Uns poucos animais que estavam nas proximidades correram apavorados ao ouvir o estrondo. Talvez algum morador das redondezas até tenha acordado com o terrível barulho, mas voltaram a dormir. No carro o total silêncio tomou conta. Aquele intermitente soar da buzina que ouvimos nos filmes quando acontece um acidente não houve, pois o motorista nem tocou a buzina. Com o choque saltou do banco e ultrapassou o para-brisas e chocou-se contra a superfície cilíndrica do poste e caiu para o lado já sem vida.
Normalmente o socorro custa a chegar, mas aquele dia – ou noite melhor dizendo – foi bem rápido. Logo estava no local uma viatura da polícia rodoviária e uma ambulância. Buscaram sobreviventes e não acharam. Tinham de descobrir a identidade da vítima para avisar parentes ou amigos. O normal seria inquirir os bolsos da vítima a procura de documentos, mas um envelope vermelho berrante com letras garrafais dizendo: “ATENÇÃO/RÁPIDO” chamou atenção dos socorristas.
Abriram o envelope e viram que havia uma carta dizendo que “Silvia Pereira Mattos estava à espera de um coração e que ele, que havia morrido era compatível conforme atestavam documentos do hospital que estavam no mesmo envelope”

3 comentários:

Simone butterfly disse...

Oi Amigo admiro o seu jeito de escrever e a emoção que passa para nós leitores. Aproveitar e lhe desejar uma ótima sexta-feira, beijos carinhosos

Bárbara disse...

Noooooooooooooooooooooooooossa!!!! Que coisa mais maravilhosa! Amei!!!

Humberto Orcy da Silva disse...

Barbaridade.