quinta-feira, agosto 27

Beliziário


Diz que era uma noite de inverno, com lua cheia e chovia muito, e três desgarrados como ele encontraram a tapera abandonada. Não foi por vandalismo ou vadiagem. Era muito frio e muita chuva que eles resolveram parar por ali. Viram a casa abandonada e, pelo quadro que se apresentava a casa não recebia gente a muito. Parece até que não forçaram a porta, estava aberta e se adonaram, mas era coisa só para uma noite. Entraram e fizeram um fogo bem em frente à porta da casa. Não sei se tinham provisão mas, devem ter feito algo para comer. Móveis lá não havia pois, a muito estava abandonada e, justamente naquela noite Beliziario estava chegando sabe-se lá de onde por aquelas bandas. De tempos em tempos ele passava por ali. Era como uma peregrinação que o índio fazia. E vai que ao chegar em uma coxilha ele viu o lume do fogo que os viventes fizeram. O sangue deve ter fervido nas veias do coitado. Sua querência sagrada estava sendo profanada. Deve ter se aproximado o mais que pode sem ser visto e acantonou-se em algum capão nas redondezas. Amarrou o zaino – imagino eu, pois não estava junto, conto o que me contaram e um pouco do que imagino – e esperou até ter certeza que os tiatinos estivessem dormindo. Acostumado com peleias como era, deve ter matutado um plano de guerra! Deve ter ficado de “mancito” por muito tempo até as charlas acabarem e ter a certeza que estavam nos braços do Morpheu. Pegou a espada veterana do Paraguai e da “de dez anos” acostumada com o sangue e foi chegando quieto que nem “cusco ladrão em volta da mesa do assado” até a porta da tapera. Imagino que os coitados não pensaram nem sequer em deixar alguém de prontidão afinal, não era tempo de refrega. O continente estava em paz a mais ou menos uns bons dois anos. Coisa rara naquele tempo. Manoel, que é dono deste bolicho que pode contar bem melhor o causo, me falou que ele jogou um punhado de um cupinzeiro no meio das chamas da fogueira que ainda ardia em frente à porta da tapera e correu para trás de um umbú solitário bem ao lado esquerdo da tapera.
_ Mas como ele sabe isso? Tava lá?
Não tava isso sei, pois isso é coisa de antes dele ter nascido, mas sabe como é dono de bolicho! Tem mais conhecimento que “dotor” com anel no dedo! Mas “qué” saber o causo ou “qué” por a prova?
_ Fica quieto Neco... Deixa o índio contar o sucedido!
Pois então!... Vai que um deles acordou e foi ver se era gente ou boi-tatá e foi caí nas mãos do Beliziario... Nas mãos modo de falar, caiu mesmo foi na carneadeira que deu uma gravata colorada prô sujeito. Não deu nem um piu. Acostumado com as guerras o Beliziario abriu num talonaço de adaga um sorriso do demônio no pescoço do coitado. Pelo que falam dele, antes do primeiro pingo de sangue cair no chão ele já devia estar escondido de novo pronto para o próximo. Mas parece que os caras tavam de quebrante pois, não saiu mais nenhum pra rua.
_ Ah! Mas o defunto deve ter feito um griteiro ao se estrebuchar...
Vai saber! Índio acostumado na peleia deve saber matar em silêncio...
_ Hum!!!
_ Ta! Conta lá ou não pago nem mais um lizo.
Mas me deixa então! Pelo que sei, ele deitou no chão e entrou na tapera em silêncio com a carneadeira entre os dentes e a espada na cintura como uma cruzeiro. Era bem mais fácil “cagar” os tais a bala mas, parece que os anos de refrega o acostumaram a abater o inimigo “aos costumes”. Foi “chegano”, “chegano”, “chegano”, “chegano” e com uma mão tapou a boca do que estava mais próximo e com a outra deu a gravata colorada ainda em sonhos prô índio. O vivente, que agora não vivia mais, não teve tempo nem de abrir os olhos...
_ Mas como o amigo sabe esses detalhes todos?
Sabê! Sabê! Eu não sei! Mas sem “detalhe” a coisa fica sem graça né?
_ Putz!
Mas vai que ele não quis dar cabo do outro assim no mais. Podia fazer o mesmo que fizera com aquele...
_ Que fez?
Pois então! Como um louco, ficou de pé e gritou um grito que dizem que até hoje em dia de chuva com lua cheia se ouve por aquelas bandas o seu grito...
_Ah! Pára...
Não afianço! Só falo o que me falaram!
_ Tá!
Então! Com o grito o último levantou como se estivesse sendo chamado pelo diabo. Não teve tempo nem de falar e uma espada já estava colada em seu gogó. Não matou o homem ali não. Depois de xingar muito e dar uns pranchaços no lombo do sujeito, fez ele caminhar até os fundos da tapera onde havia duas pequenas cruzes de madeira e umas flores murchas molhadas pela chuva. Fez o cara ajoelhar em frente a elas e rezar dez Pai Nossos e dez Ave Marias para sua filhinha e sua esposa que descansavam naquele campo santo particular.
_ .........
É!... Depois de dizer que eles não deviam ter profanado o lar em que ele fora um homem feliz, em um só talonaço separou a cabeça chorona do resto do corpo.
_Sério?
Ué! Sério!... Ainda no escuro, buscou umas flores e enfeitou o tumulo de seus amores. Tirou o sangue da adaga e da espada com a água da chuva e voltou ao capão para buscar seu pingo e retornar a suas andanças sem destino. Quer dizer! Sem rumo certo, pois de tempos em tempos ele voltava para colocar novas flores para suas gurias. Por isso até hoje aquilo lá está como está e ninguém compra. O povo, que é cheio de “suspeitição” acha que o lugar é assombrado por um fantasma. Eu “dotor”, acho que aquilo lá é guardado pelo amor. Alceu... me serve mais uma aqui por conta do “dotor”.

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